Jonatas Almeida Fernandes Soares
05/12/2025
DIREITOS HUMANOS EM SUA PERSPECTIVA HISTÓRICO JURÍDICA: DO DECRETO DE CIRO À DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
DIREITOS HUMANOS EM SUA PERSPECTIVA HISTÓRICO JURÍDICA: DO DECRETO DE CIRO À DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
Jonatas SOARES¹
RESUMO: Este artigo tem por objetivo realizar uma análise da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 à luz do Decreto de Ciro, proclamado no século VI a.C., considerado por muitos historiadores um marco de proteção às minorias na antiguidade. Tomando por base uma perspectiva do direito natural e do direito positivo, o estudo investiga os fundamentos éticos, jurídicos, filosóficos e históricos que conectam esses dois documentos, ainda que distantes no tempo e no contexto sociopolítico. A pesquisa revela que, tanto na Antiguidade quanto na Contemporaneidade, houve esforços significativos para institucionalizar valores como a dignidade, a liberdade e a justiça. Utilizando-se de metodologia qualitativa, com base bibliográfica interdisciplinar, a análise demonstra que a proteção dos direitos humanos tem raízes que antecedem sua formalização jurídica moderna. A comparação revela também os limites e desafios da efetivação desses direitos, reforçando a ideia de que a dignidade humana é um valor perene.
Palavras Chave: Direito Natural. Direito Positivo. Dignidade Humana. Decreto de Ciro. Declaração Universal dos Direitos Humanos.
INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo principal investigar as origens e os fundamentos históricos dos direitos humanos, identificando suas raízes filosóficas, religiosas, culturais e jurídicas. O recorte para tanto, foi um comparativo entre dois documentos muito distantes no tempo, mas que de certa forma, dialogam entre si: o Decreto de Ciro, de 539 a.C., e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948. Ainda que separados por mais de dois mil anos, ambos expressam preocupações centrais para a humanidade, como dignidade, liberdade e justiça. Nesse sentido, entende-se que certos valores atravessam épocas diferentes e continuam sendo referência até hoje. A problemática que norteia a pesquisa pode ser resumida assim: até que ponto é possível encontrar fundamentos objetivos para justificar a proteção dos direitos humanos em contextos tão distintos como o Império Persa e o cenário pós-Segunda Guerra Mundial? Em outras palavras, busca-se compreender em que medida o Decreto de Ciro pode ser visto como um precursor dos princípios que, na modernidade, foram positivados na Declaração de 1948. Entre os objetivos específicos, destacam-se: analisar o contexto histórico do Império Persa e a importância do Decreto de Ciro, sobretudo no que diz respeito à liberdade religiosa e à reconstrução de identidades coletivas; examinar os princípios básicos da DUDH, compreendendo seu contexto de criação no pós-guerra; estabelecer uma comparação crítica entre os dois documentos, buscando convergências e diferenças à luz do direito natural e do direito positivo. A justificativa da pesquisa decorre da necessidade de refletir sobre os fundamentos da dignidade humana diante de problemas atuais, como autoritarismo, guerras, intolerância religiosa e crise de refugiados. Na prática, observa-se que revisitar o Decreto de Ciro e colocá-lo em diálogo com a DUDH não serve apenas para compreender a historicidade dos direitos humanos, mas também para reforçar sua universalidade como valor permanente. A metodologia é qualitativa, de caráter teórico e comparativo, com base em pesquisa bibliográfica. O estudo reúne contribuições de diferentes áreas históricas, direito, filosofia, antropologia e teologia, apoiando-se em autores como Lynn Hunt, Norberto Bobbio, Hans Kelsen, Michael Sandel, Luís Roberto Barroso e Ingo Sarlet. Também se utilizam estudos de arqueologia, como os de Irving Finkel e Henry Rawlinson, que ajudam a interpretar o Cilindro de Ciro. O trabalho se organiza em 5 capítulos. O primeiro trata do contexto histórico do Império Persa e do significado político e religioso do Decreto de Ciro. O segundo e terceiro capítulo aborda a na interpretação entre direito natural e direito positivo na análise da história do direito com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos, situando-a em seu contexto histórico e jurídico. Já o quarto e quinto capítulo realiza a comparação entre os documentos, destacando convergências e divergências e nas interpretações e implicações éticas e antropológicas dentro do universalismo e multiculturalismo. Ao final, apresentam-se as considerações finais, reafirmando o resultado da pesquisa.
1. PANORAMA HISTÓRICO DO DECRETO DE CIRO – UM RECORTE HISTORIOGRÁFICO: A principal fonte material para a compreensão da política de Ciro é o chamado Cilindro de Ciro, artefato de argila cozida inscrito em acádio e escrita cuneiforme. O cilindro foi encontrado em março de 1879, durante escavações no complexo do templo Ésagila, na antiga Babilônia (atual Iraque), dirigidas por Hormuzd Rassam sob patrocínio do British Museum. (RASSAM, 1897; BRITISH MUSEUM, s.d.). A descoberta é atribuída a Hormuzd Rassam (1849–1910), arqueólogo assírio-britânico que chefiou, por delegação do British Museum, escavações em Babilônia entre 1878 e 1882. Estudos prosopográficos e arquivísticos sobre as missões de Rassam detalham a logística, o financiamento institucional e os depósitos museológicos subsequentes, reforçando a atribuição do achado ao seu trabalho de campo. (RASSAM, 1897; READE, 1986; BRITISH MUSEUM, s.d.). A primeira comunicação e tradução parcial em inglês do texto do cilindro foi publicada por Henry Creswicke Rawlinson em 1880, na Journal of the Royal Asiatic Society, com comentários filológicos e históricos. (RAWLINSON, 1880). Na sequência, Theophilus G. Pinches preparou cópias, transcrições e colações do texto, e a primeira edição oficial com pranchas do cilindro saiu em 1884 no volume V de The Cuneiform Inscriptions of Western Asia (CIWA), organizado pelo British Museum sob a direção de Rawlinson, com a colaboração técnica de Pinches — onde o cilindro aparece na Prancha 35. (RAWLINSON; PINCHES; BRITISH MUSEUM, 1884). Para uso acadêmico contemporâneo, a tradução de referência é a edição moderna de Irving Finkel (British Museum), com revisão histórica e aparato crítico. (FINKEL, 2013; THE MET, 2013). O Cilindro de Ciro integra a coleção do British Museum (Londres), Departamento do Oriente Médio, sob nº de inventário ME 90920 (registro: W 1880,0617.1941). A ficha do acervo traz dados de proveniência, bibliografia essencial e imagens oficiais. (BRITISH MUSEUM, s.d.). Ciro (Kurash), o Grande, foi o fundador da dinastia Aquemênida e do Império Persa no século VI a.C., que pode ser definido como uma sucessão de Estados que controlaram o Planalto Iraniano ao longo do tempo. Sua ascensão pode ser vista como uma revolução interna que não desestruturou o império, mas o consolidou, já que foi lembrado como um governante de postura humanitária. Antes de seu reinado, os medos dominavam os povos iranianos e persas, mas Ciro liderou uma rebelião contra eles, tornando-se admirado pela política de tolerância e entendimento que marcou seu governo. Assim, ele fundou o primeiro império com um viés ético na história humana, anexando três grandes potências da época, a Média, a Lídia e a Babilônia e unindo a maior parte do antigo Oriente Médio em um único Estado que se estendia da Índia até o mar Mediterrâneo. Ao reconhecer a diversidade cultural e religiosa, Ciro se aproximou dessa concepção de dignidade, ao invés de impor uniformidade aos povos dominados. Na visão de Guarinello (2013, p. 42), no Antigo Oriente, o direito não se constituía como esfera autônoma, mas como expressão integrada da ordem cósmica, religiosa e política.” O Imperador utilizava o Decreto como forma de lei, sendo um dos mais conhecidos a autorização para a reconstrução do Templo de Jerusalém, medida que garantiu liberdade religiosa e permitiu que o povo exilado na Babilônia pudesse retornar à sua pátria. As fontes do direito na Antiguidade estavam relacionadas a diferentes códigos, como o de Hamurabi e a coleção assíria de leis hititas. Eram conjuntos normativos que misturavam aspectos religiosos, éticos e culturais, refletindo os costumes de diferentes povos. Para a tradição hebraica, cinco textos se destacavam como base reguladora da vida social e religiosa: o Decálogo, o Código da Aliança, o Deuteronômio, o Código de Santidade e o Código Sacerdotal. Este último teve importância decisiva no retorno do Exílio, pois estabelecia normas sobre consagração de sacerdotes, sacrifícios e pureza, funcionando como referência em um período em que a legislação de Israel ainda era instável. O Rei dentre outras funções, também possuía o poder judicial, atuando em circunstâncias criminais, civis e administrativas, assim o rei podia proclamar das decisões diante do povo, através de seus porta-vozes, assim também proclamava suas leis. Os sacerdotes eram o intermediário entre o ser humano e Deus, para analisar as cláusulas dos códigos, assim sua função era analisar os dispositivos jurídicos, proclamados pelo Rei, para verificar se o mesmo estaria submetido deste mesmo código. Segundo Ciro Flamarion Cardoso (2005, p. 40) explica que essa inserção dos sacerdotes como intérpretes do direito “O sacerdócio não era apenas um corpo religioso, mas uma instituição política central na manutenção da ordem e da coesão social.” Anteriormente, não existia a função do sacerdócio, pois não havia uma organização social nas comunidades, com o passar do tempo foi tendo a formação do estado mais avançado e o papel do sacerdócio começou a aparecer. Eram conhecidos também como kohen. Não há um significado certo, da palavra em si, mas seria como “O homem diante de Deus”. Nesse sentido, Guarinello (2003, p. 45) ressalta que a institucionalização das funções religiosas e jurídicas foi fundamental para a consolidação das estruturas políticas no mundo antigo, pois nelas se combinavam autoridade, legitimidade e organização social. Essa observação ajuda a compreender como, mesmo no exílio, o povo judeu manteve suas referências culturais e religiosas. Ciro é bastante reconhecido por libertar o povo judeu, pois este estava dividido em dois reinos: o do Norte (Israel) e o do Sul (Judá). O reino do Norte encontrava-se profundamente conturbado quando Jerusalém foi saqueada e o templo destruído, obrigando a população ao exílio na Babilônia. Em 587 a.C., ocorre a queda definitiva de Jerusalém pelas mãos de Nabucodonosor, evento que marcou a dissolução da estrutura política e religiosa israelita. No exílio babilônico, o povo se encontrava sem terra, sem rei e sem templo, elementos que constituíam a base de sua identidade. Sem a monarquia e sem a centralidade do culto, a função do sacerdócio se transforma, assumindo um caráter institucional e voltado principalmente à preservação da palavra e da memória religiosa. Como destaca Ciro Flamarion Cardoso (2005, p. 42), o sacerdócio no Oriente Próximo desempenhava papel fundamental na manutenção da ordem social e religiosa, atuando como mediador entre o sagrado e a comunidade, especialmente em períodos de instabilidade política. Nesse contexto, os líderes religiosos procuraram manter a coesão social por meio da palavra de Deus e da preservação das tradições. Assim, quando o rei Ciro conquista a Babilônia e promulga o decreto permitindo que o povo exilado retornasse às suas cidades de origem e reconstruísse suas instituições, inaugura-se um processo de reorganização da vida coletiva israelita. Segundo Norberto Luiz Guarinello (2013, p. 87), a restauração do templo e das práticas religiosas após o exílio não foi apenas um ato espiritual, mas também um instrumento de recomposição da ordem social e política, reafirmando a identidade comunitária e a legitimidade do poder. Em uma análise contemporânea do panorama histórico da época, se pode constatar que a política esposada por Ciro, encontraria guarida hoje na reflexão de Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 122), segundo a qual “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza e o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. Como observa Lynn Hunt (2009, p. 34), a ideia de direitos humanos nasce também da formação de uma nova sensibilidade cultural, quando se passa a reconhecer no outro a mesma dignidade que se reivindica para si. Essa leitura ajuda a entender por que os atos de Ciro ultrapassaram o caráter meramente político e passaram a ser vistos como gestos de respeito à identidade dos povos. O “Decreto de Retorno dos Judeus (539 a.C.)” aparece nesse livro como parte da coletânea de documentos históricos, e a tradução usada é atribuída ao próprio organizador. Cartas da Humanidade, Edson Bini, p. 17–18 (edição de 2002 da Martin Claret). Decreto de Retorno dos Judeus (539 a.C.), na perspectiva de Kurash: Eu Sou Kurash (Ciro), Rei do Mundo, Grande Rei, Rei Legítimo, Rei de Babilônia, Rei de Kiengir e Acádia, Rei das Quatro Beiras da Terra, filho de Kanbujiya, Grande Rei, Rei de Hakhamanish, neto de Kurash, Grande Rei, Rei de Hakhamanish, descendente de Chishpish, Grande Rei, Rei de Hakhamanish, de uma família que sempre exercitou a realeza, cuja lei Bel e Nebo amam, a quem eles querem como rei agradar seus corações. Quando entrei na Babilônia como um amigo e quando estabeleci o assento do governo dentro do palácio do regente debaixo de júbilo e alegria, Marduk, o grande senhor, induziu os habitantes magnânimos da Babilônia a me amar, e eu estive diariamente emprenhado em adorá-lo [...] Quanto a regiões tão longínquas quanto Assura e Susa, Acádia, Eshnunna, as cidades Zamban, Me-turnu, Der, como também a região do Gutians, devolvi a essas cidades sagradas no outro lado do Tigre, a seus santuários que foram ruínas por muito tempo, as imagens que ali costumavam viver, e estabeleci para santuários permanentes. Reuni também todos os seus habitantes anteriores devolvi-lhes suas habitações. Além disso, reorganizei, ao comando de Marduk, o grande senhor, incólumes, em seus templos anteriores, nos lugares que os fazem felizes, todos os deuses de Kiengir e Acádia que Nabonido havia trazido para dentro da Babilônia, para ira do senhor dos deuses. Pela visão bíblica, está narrada no livro de Esdras, tradicionalmente atribuído ao escriba e sacerdote, foi escrito entre 458–398 a.C., no contexto do domínio persa, registrando o retorno dos judeus a Jerusalém e a reconstrução do Templo. O trecho de Esdras Capitulo 1, versículo 1– 8, aqui citado, segue a tradução de João Ferreira de Almeida, versão Revista e Atualizada (ARA), publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil (2011). Do ponto de vista Bíblico (Esdras Capítulo 1, versículos 1-8) Almeida Revista e Atualizada (ARA). 1. No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia (para que se cumprisse a palavra do Senhor, pela boca de Jeremias), despertou o Senhor o espírito de Ciro, rei da Pérsia, o qual fez passar pregão por todo o seu reino, como também por escrito, dizendo: 2. Assim diz Ciro, rei da Pérsia: O Senhor Deus dos céus me deu todos os reinos da terra, e me encarregou de lhe edificar uma casa em Jerusalém, que está em Judá. 3. Quem há entre vós, de todo o seu povo, seja seu Deus com ele, e suba a Jerusalém, que está em Judá, e edifique a casa do Senhor Deus de Israel (ele é o Deus) que está em Jerusalém. 4. E todo aquele que ficar atrás em algum lugar em que andar peregrinando, os homens do seu lugar o ajudarão com prata, com ouro, com bens, e com gados, além das dádivas voluntárias para a casa de Deus, que está em Jerusalém. 5. Então se levantaram os chefes dos pais de Judá e Benjamin, e os sacerdotes e os levitas, com todos aqueles cujo espírito Deus despertou, para subirem a edificar a casa do Senhor, que está em Jerusalém. 6. E todos os que habitavam nos arredores lhes firmaram as mãos com vasos de prata, com ouro, com bens e com gado, e com coisas preciosas; além de tudo o que voluntariamente se deu. 7. Também o rei Ciro tirou os utensílios da casa do Senhor, que Nabucodonosor tinha trazido de Jerusalém, e que tinha posto na casa de seus deuses. 8. Estes tirou Ciro, rei da Pérsia, pela mão de Mitredate, o tesoureiro, que os entregou contados a Sesbazar, príncipe de Judá. Consequentemente, após a libertação na Babilônia, os antigos costumes ainda permaneciam nas famílias, pois não havia uma concepção de Estado consolidada. Mesmo com a forte influência cultural e religiosa, os judeus constituíram uma comunidade organizada sobretudo em torno da religião, sob o governo de seus sacerdotes. A ideia de ter um rei ainda se mantinha após o exílio, pois representava o modelo ideal de unidade política e espiritual da comunidade judaica. O texto gravado no Cilindro de Ciro, com cerca de 23 cm de comprimento, registra as ações do imperador após a conquista da Babilônia, incluindo a restauração dos templos locais, a devolução de imagens sagradas e a permissão para os povos exilados retornarem às suas terras. Esse documento possui um valor simbólico imenso, pois reflete um reinado baseado na justiça e na misericórdia, em contraste com o modelo tradicional do governante absoluto e violento. As ações de Ciro se alinham a essa sensibilidade, antecipando, em parte, princípios que séculos mais tarde seriam identificados como direitos humanos. Do ponto de vista antropológico, o gesto de Ciro pode ser compreendido como uma expressão simbólica do direito. Clifford Geertz (2001, p. 215) destaca que “o direito não é apenas um conjunto de normas, mas um sistema cultural que expressa significados partilhados”. Assim, ao devolver aos povos sua religião, suas imagens sagradas e sua autonomia, Ciro utilizou o direito como forma de coesão social, fortalecendo identidades coletivas em vez de destruí-las. No plano normativo, é possível observar que os códigos jurídicos da Antiguidade já incorporavam aspectos éticos e religiosos em suas legislações. O Código de Hamurabi, por exemplo, apresentava normas morais aplicadas à vida civil, baseadas na justiça retributiva. No caso hebraico, os códigos mosaicos — o Decálogo, o Código da Aliança, o Deuteronômio, o Código de Santidade e o Código Sacerdotal — regulavam não apenas a vida social, mas também a relação entre o povo e Deus. O Código Sacerdotal, em especial, ganhou relevância após o retorno do exílio, quando o sacerdócio se consolidou como centro da vida comunitária. Sobre esse ponto, Tristão e Fachin (2009, p. 57) ressaltam que “a história do direito revela sua permanente vinculação às transformações sociais, políticas e religiosas, pois é a partir delas que se estruturam os sistemas normativos”. O papel do rei, nesse contexto, não se restringia à administração civil: ele era juiz, legislador e mediador entre o divino e o humano. Ciro assumia essas funções, proclamando decretos que ordenavam a vida e a justiça de seus súditos. Os sacerdotes, por sua vez, atuavam como intérpretes da vontade divina e guardiões da pureza religiosa e jurídica. O retorno dos judeus após o exílio babilônico, autorizado por Ciro, representou mais do que um movimento migratório: foi a reconstrução da identidade espiritual e política de um povo. Conforme aponta Ingo Sarlet (2002), a dignidade da pessoa humana é um valor que antecede a norma e fundamenta todo o sistema de direitos. Ao reconhecer a dignidade do povo judeu e sua liberdade religiosa, Ciro instituiu, de forma ainda não codificada, o respeito ao valor intrínseco da pessoa e da comunidade. Hans Kelsen (2000), embora defensor da separação entre direito e moral, reconhece que a eficácia do sistema jurídico depende de sua aceitação social. O gesto de Ciro, nesse sentido, demonstra que, mesmo fora de um sistema jurídico formalmente positivado, o direito pode emergir da autoridade legítima e da consciência de justiça. Ainda que a teorização sobre os direitos humanos estivesse distante de sua formulação moderna, o ato político de Ciro revela uma compreensão moral do poder no qual o bem-estar do outro é reconhecido como fim legítimo da autoridade estatal. Ao considerar a relação entre fé e política no mundo antigo, percebe-se que a legitimação do poder estava profundamente ancorada na religião. O Cilindro de Ciro invoca o deus Marduk como fonte de inspiração para suas ações, e o texto bíblico atribui sua iniciativa ao “espírito do Senhor” (Esdras 1:1). Essa convergência teológica, em registros distintos, reforça o papel da religião como força normatizadora e estruturante do direito nas sociedades antigas. Michael Sandel (2011), ao refletir sobre a justiça como virtude pública, sustenta que os valores compartilhados são essenciais para legitimar as instituições e decisões políticas. O decreto de Ciro, portanto, é uma manifestação clara de valores morais compartilhados entre o governante e os governados. Sob a ótica da teoria dos direitos humanos contemporâneos, conforme exposta por André de Carvalho Ramos (2013), o gesto de Ciro poderia ser lido como uma antecipação de princípios hoje internacionalmente reconhecidos, como o direito à autodeterminação dos povos, à liberdade religiosa e à reparação histórica. Embora não tivesse as ferramentas jurídicas do direito internacional, sua ação produziu efeitos semelhantes aos que hoje se espera de sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. Portanto, demonstra que a prática da justiça e da promoção da dignidade humana antecede a formalização legal dos direitos humanos. O exemplo de Ciro, o Grande, é paradigmático nesse sentido: ele atuou como soberano, sacerdote e legislador, guiado por valores que ainda hoje fundamentam o ideal humanista moderno. A presença do Cilindro de Ciro no Museu Britânico não é apenas um testemunho arqueológico, mas um símbolo histórico de que, em todos os tempos, houve vozes e gestos que reconheceram, protegeram e promoveram aquilo que hoje chamamos de direitos humanos.
2. A INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: ENTRE O DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO: Ao longo da história, duas grandes tradições moldaram o pensamento jurídico: o jusnaturalismo e o positivismo. Cada uma delas se baseia em fundamentos diferentes, mas ambas procuram responder à mesma questão: o que torna o direito legítimo e como ele deve ser aplicado? Enquanto o jusnaturalismo parte da ideia de que existem princípios universais e superiores à vontade humana, que orientam a criação das leis, o positivismo afirma que o direito só é válido quando posto formalmente pelo Estado em forma de lei. O jusnaturalismo tem origens muito antigas. Entre os gregos, os filósofos estóicos acreditavam na existência de uma ordem racional inscrita na própria natureza, válida para todos os povos. Na Idade Média, Tomás de Aquino retomou a noção de direito natural ao afirmar que a razão humana participa da lei eterna de Deus, e que nenhuma lei humana que contrarie esse princípio pode ser considerada justa. Essa linha de pensamento conferiu ao direito natural uma função dupla: fundamento da legitimidade do poder e limite contra abusos do governante. Michael Sandel afirma (2012, p. 139), “a ideia de direito natural expressa a convicção de que existem princípios morais que não dependem de convenção humana e que servem de critério para julgar a justiça das leis positivas.” Com a modernidade, o jusnaturalismo se transformou em instrumento de crítica e de emancipação política. Autores como Grotius, Locke e Rousseau recorreram à ideia de direitos naturais para justificar a liberdade, a igualdade e o contrato social. Locke afirmava que a propriedade e a resistência à tirania estavam fundadas em direitos anteriores ao Estado. Rousseau, por sua vez, defendia a soberania popular como expressão da vontade geral. Como diz André de Carvalho Ramos (2013, p. 55), “os direitos humanos são dotados de uma pretensão universal de validade, pois derivam de valores éticos que antecedem o próprio Estado”. O positivismo jurídico surge como reação a essa tradição. Embora já estivesse presente em Hobbes, que via no contrato social a entrega de poder absoluto a um soberano capaz de garantir a ordem, ele ganhou forma sistemática com Hans Kelsen, no século XX. Kelsen propôs a chamada “teoria pura do direito”, na qual a validade das normas não depende de princípios éticos, mas apenas da sua produção dentro de um sistema hierarquizado, em forma de pirâmide. O direito, assim, deve ser estudado de forma autônoma, sem misturar política, moral ou sociologia. Como lembra Germano Schwartz (2001, p. 72), “a separação entre direito e moral é condição de cientificidade, sendo a norma jurídica válida independentemente de juízos éticos”. Apesar da oposição aparente, há pontos de encontro entre as duas escolas. Locke e Rousseau recorreram ao direito natural para fundamentar valores que mais tarde seriam positivados nas constituições. Kelsen, por outro lado, ofereceu um modelo lógico e previsível, capaz de dar segurança jurídica aos cidadãos. Norberto Bobbio (2004, p. 23) observa que “o problema fundamental dos direitos humanos não é justificá-los, mas protegê-los”, ou seja, de nada adianta afirmar princípios abstratos sem instrumentos eficazes para garanti-los. É justamente nessa convergência que o debate se renova: o jusnaturalismo fornece o fundamento ético, e o positivismo oferece os meios jurídicos para efetivá-lo. A afirmação mostra que não basta reconhecer valores universais sem considerar as especificidades culturais e históricas dos povos. O multiculturalismo, defendido por Boaventura, exige que a normatividade reconheça tanto a igualdade fundamental quanto a diversidade, o que reforça a importância de um diálogo constante entre jusnaturalismo e positivismo. Marcelo Neves acrescenta outro ponto relevante ao falar da “força simbólica” dos direitos humanos. Segundo ele, mesmo quando são ineficazes, os direitos produzem impacto social, funcionando como horizonte de expectativa e limite ao poder. Essa leitura crítica dialoga com Bobbio e mostra que a positivação das normas, embora essencial, não é suficiente sem um reconhecimento cultural e ético. Flávia Piovesan, por sua vez, observa que o sistema internacional de proteção de direitos humanos combina as duas tradições: baseia-se em valores universais, mas depende de tratados e mecanismos jurídicos positivos para garantir eficácia. Nos dias atuais, essa discussão permanece central. Ingo Sarlet considera a dignidade da pessoa humana como valor-fonte de todo o ordenamento, mas destaca que ela só ganha realidade através da atuação estatal e da positivação em normas concretas. Luís Roberto Barroso reforça que a dignidade se tornou o núcleo do constitucionalismo contemporâneo, funcionando ao mesmo tempo como princípio ético e como norma vinculante. André de Carvalho Ramos lembra que a proteção internacional é indispensável para evitar que os direitos humanos fiquem restritos ao discurso retórico, sendo necessário um sistema de fiscalização e aplicação efetiva. Esse percurso histórico ajuda a compreender a diferença entre o Decreto de Ciro e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). O decreto, mesmo sem ser fruto de uma teoria jurídica sistematizada, aproxima-se da tradição naturalista ao reconhecer a dignidade, a liberdade religiosa e a identidade cultural dos povos conquistados. Já a DUDH busca transformar esses princípios em normas positivas de alcance global, com pretensão de eficácia jurídica. A comparação mostra que, em contextos distintos, o movimento foi o mesmo: da ética à lei, da filosofia moral à institucionalização jurídica. Assim, o jusnaturalismo oferece a base ética das lutas humanas por justiça, enquanto o positivismo garante sua realização em estruturas normativas concretas. Sem valores universais, o direito corre o risco de se reduzir à mera técnica; sem positivação, esses valores permanecem vazios. As maiores conquistas jurídicas da humanidade nasceram justamente da combinação das duas tradições, e é nessa complementaridade que se insere a reflexão deste trabalho, ao comparar Ciro e a DUDH como expressões diferentes do mesmo esforço humano: transformar a dignidade em direito.
3. A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS: HISTÓRIA DO DIREITO A história do direito é marcada por um longo percurso de transformações sociais, filosóficas e políticas, que culminaram na elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. A trajetória que conduz a esse documento não pode ser compreendida sem o reconhecimento de que o direito é, antes de tudo, uma construção histórica em constante diálogo com as mudanças das sociedades humanas. Desde as primeiras formas normativas do mundo antigo, como os códigos mesopotâmicos, as leis hebraicas e os decretos reais, até a sistematização moderna do direito positivo e a emergência dos direitos humanos universais, observa-se uma progressiva complexificação na maneira como as comunidades humanas concebem justiça, legitimidade e dignidade. Essa trajetória de evolução normativa ganha nova dimensão com as transformações políticas e intelectuais da modernidade, que reformularam profundamente a compreensão do direito e do papel do indivíduo na ordem jurídica. O caminho que leva à DUDH está intimamente ligado às rupturas e crises da modernidade. As revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, como a Revolução Inglesa, a Independência Americana e a Revolução Francesa, marcaram um momento decisivo na transição de um direito fundado na autoridade divina ou monárquica para um direito centrado na razão e na vontade popular. O pensamento de Thomas Jefferson exerceu papel central na consolidação da ideia moderna de direitos humanos. Ao redigir a Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776), Jefferson traduziu ideais filosóficos em uma linguagem política universal, afirmando que “todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade” (JEFFERSON apud HUNT, 2009, p. 13). Como destaca Lynn Hunt, essa frase “transformou um típico documento do século XVIII sobre injustiças políticas numa proclamação duradoura dos direitos humanos”, inspirando não apenas o pensamento iluminista europeu, mas também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), da qual o próprio Jefferson participou indiretamente durante sua estadia em Paris. Documentos como a Declaração de Direitos da Virgínia (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) já antecipavam princípios que seriam consolidados posteriormente na DUDH, ao afirmarem que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Entretanto, como observa Celso Lafer, esses textos ainda estavam profundamente enraizados no contexto estatal e não alcançavam a dimensão universal que o século XX exigiria. Para o autor, a internacionalização dos direitos humanos foi uma resposta às experiências extremas do totalitarismo, que mostraram os limites do Estado-nação na proteção da dignidade humana. (LAFER, 2003, p. 45). O século XX assistiu ao colapso de estruturas políticas e jurídicas que haviam sustentado a ordem moderna. As duas guerras mundiais expuseram a incapacidade dos sistemas jurídicos nacionais de conter atrocidades cometidas em nome do Estado. O Holocausto, em particular, demonstrou que a cidadania considerada até então o principal vínculo entre indivíduo e direitos podia ser negada com base em critérios arbitrários, deixando milhões de pessoas em uma zona de não-direito. Hannah Arendt, analisada por Lafer, destaca que “o direito a ter direitos” emerge precisamente da experiência daqueles que foram privados de qualquer pertença política, revelando a necessidade de um patamar jurídico acima do Estado (LAFER, 2003, p. 62). A DUDH surge, assim, como resposta a essa lacuna histórica, propondo um horizonte normativo universal capaz de proteger a dignidade humana independentemente da nacionalidade. A promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 10 de dezembro de 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, foi um marco não apenas jurídico, mas também civilizatório. Ela surge logo depois dos horrores da Segunda Guerra Mundial, principalmente do Holocausto, que deixou claro como o direito positivo, quando se afasta da ética e da moral, pode acabar legitimando regimes totalitários e práticas desumanas. Nesse sentido, entende-se que a DUDH nasce como resposta: uma tentativa de afirmar que certos direitos são inegociáveis, universais e pertencem a qualquer ser humano, independentemente de cultura, religião ou governo. A Declaração representou uma virada paradigmática na história do direito. Ela rompeu com a lógica estritamente estatal, afirmando princípios universais que transcendem fronteiras e sistemas jurídicos particulares. Flávia Piovesan observa que a DUDH inaugura “um novo paradigma jurídico internacional, no qual o indivíduo se torna sujeito de direitos perante a comunidade internacional” (PIOVESAN, 2013, p. 29). Essa mudança reflete uma transformação estrutural no pensamento jurídico: os direitos deixam de ser meramente garantidos pelo Estado para se tornarem exigíveis em face da humanidade como um todo. O contexto histórico da DUDH também revela a influência decisiva da filosofia política e jurídica desenvolvida ao longo dos séculos. As tradições jusnaturalista e positivista, embora divergentes, convergem nesse momento histórico ao fornecer os fundamentos éticos e normativos do novo direito internacional dos direitos humanos. A ideia de uma dignidade inerente à pessoa humana, herança do jusnaturalismo foi incorporada ao texto da Declaração, ao passo que a sua positivação em um documento aprovado por uma assembleia internacional reflete a importância do positivismo jurídico. Marcelo Neves lembra que “o caráter simbólico dos direitos humanos é inseparável de sua função normativa: eles representam valores compartilhados e, ao mesmo tempo, estruturam práticas jurídicas concretas” (NEVES, 2005, p. 48). Assim, a DUDH não é apenas um catálogo de princípios morais, mas também um marco jurídico que redefine o próprio conceito de legitimidade do direito no pós-guerra. O simbolismo da DUDH vai além de seu conteúdo jurídico. Ao ser proclamada por 48 Estados, ela expressou uma vontade coletiva de reconstrução da ordem mundial em bases éticas e jurídicas diferentes daquelas que permitiram os horrores da guerra. Como aponta Neves, os direitos humanos operam também como “linguagem de legitimação”, funcionando como parâmetro para avaliar e criticar práticas políticas e jurídicas (NEVES, 2005, p. 52). Essa dimensão simbólica explica por que a Declaração, mesmo sem ter caráter juridicamente vinculante, tornou-se a referência fundamental para a elaboração de tratados internacionais e constituições nacionais ao longo do século XX e XXI. Ao mesmo tempo, a positivação dos direitos humanos não eliminou suas tensões internas. Para Germano Schwartz, traz alerta para o risco de sua utilização meramente retórica pelos sistemas jurídicos contemporâneos. Segundo ele, “os direitos humanos são frequentemente invocados como discurso legitimador, sem que isso se traduz em transformações reais nas estruturas de poder e exclusão” (SCHWARTZ, 2001, p. 94). Essa crítica aponta para um desafio central da modernidade jurídica: a distância entre a normatividade formal dos direitos e sua efetividade social. Schwartz observa que a teoria positivista, ao enfatizar a validade formal da norma, corre o risco de esvaziar seu conteúdo ético, transformando o direito em instrumento de reprodução das desigualdades (SCHWARTZ, 2001, p. 103). Nesse sentido, a DUDH representa tanto uma conquista quanto um ponto de partida: sua realização depende da capacidade das instituições de transformar princípios em práticas concretas. Apesar dessas tensões, a Declaração Universal consolidou-se como o alicerce de um novo direito internacional. Ela inspirou a criação de tratados fundamentais, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) e influenciou as constituições em diversos países. Piovesan destaca que, ao afirmar a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, a DUDH estabeleceu “um consenso ético-jurídico mínimo sobre a dignidade humana, capaz de orientar a ação estatal e internacional” (PIOVESAN, 2017, p. 44). Esse consenso, no entanto, não significa uniformidade: ele reconhece a diversidade cultural e política das nações, ao mesmo tempo em que estabelece limites universais para a ação do poder. O impacto da DUDH também deve ser entendido no contexto da evolução histórica do próprio conceito de direito. Ao longo dos séculos, o direito deixou de ser apenas uma expressão do poder soberano para se tornar um instrumento de limitação desse poder. A Declaração é a expressão mais acabada dessa transformação: ela estabelece que a dignidade humana antecede e limita a autoridade estatal, invertendo a lógica segundo a qual o Estado definia quem tinha ou não direitos. Como observa Lafer, “a DUDH representa a tentativa de universalizar a experiência histórica da dignidade como valor fundante do direito” (LAFER, 2003, p. 79). Ao fazer isso, ela não apenas responde às tragédias do passado, mas projeta um horizonte normativo para o futuro. No entanto, a universalidade proclamada pela DUDH não está isenta de críticas e desafios. Schwartz alerta que, ao ser incorporada pelos sistemas jurídicos nacionais, a linguagem dos direitos humanos pode ser apropriada por interesses políticos e econômicos que esvaziam seu conteúdo emancipatório (SCHWARTZ, 2001, p. 110). Essa tensão revela a necessidade de um constante esforço de atualização e concretização dos direitos, para que não se reduzam a uma retórica legitimadora. Do mesmo modo, Neves lembra que a força simbólica dos direitos humanos só se realiza plenamente quando há mecanismos institucionais capazes de efetivar suas promessas (NEVES, 2005, p. 61). Assim, a história do direito após 1948 é também a história da luta pela concretização dos ideais proclamados na Declaração. Em síntese, a Declaração Universal dos Direitos Humanos representa o ponto culminante de um processo histórico que começa nas primeiras formas normativas da Antiguidade, atravessa as revoluções modernas e se intensifica com as crises do século XX. Ela nasce da necessidade de construir uma ordem jurídica que transcenda o Estado e coloque a dignidade humana no centro do direito. Mais do que um documento, a DUDH é um marco histórico, jurídico e simbólico, um pacto global que redefine a relação entre poder e justiça, entre Estado e indivíduo, entre o direito e a humanidade. Seu legado permanece como um horizonte ético e normativo em constante construção, desafiando os sistemas jurídicos contemporâneos a transformar promessas universais em realidades concretas.
4. CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DO DECRETO DE CIRO À DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS: A comparação entre o Decreto de Ciro e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 exige não apenas uma análise jurídica, mas também uma compreensão profunda da dimensão histórica, antropológica e ética envolvida em ambos os documentos. Apesar da distância temporal, cultural e estrutural, há entre os dois marcos um elo invisível: a tentativa humana de institucionalizar a dignidade, a liberdade e a justiça. O Decreto de Ciro deve ser lido como mais do que uma decisão política de um imperador. Trata-se de uma manifestação de valores que, embora não codificados como hoje conhecemos, antecipam em essência os princípios da liberdade religiosa, do direito ao retorno e da reparação histórica. O conteúdo do decreto, transcrito tanto na narrativa bíblica quanto nos achados arqueológicos, revela uma preocupação ética e espiritual com os povos subjugados. O ato de libertar um povo, restaurar seu templo e devolver seus bens religiosos, em um contexto de dominação imperial, revela um gesto de respeito à dignidade e à identidade de outrem. Essa atitude de Ciro ressoa fortemente com os princípios presentes no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que garante a liberdade de pensamento, consciência e religião. Ainda que separados por dois milênios, ambos os textos reconhecem que o ser humano não pode ser alienado de sua fé, sua cultura e sua história. Essa convergência permite sustentar que, apesar da modernidade jurídica da DUDH, há valores humanos fundamentais que precedem sua positivação e que se manifestam em diversos períodos da história. No Decreto de Ciro, a liberdade religiosa é assegurada pela restauração cultural promovida pelo soberano: “restaurei os templos… devolvi as imagens aos santuários” (Cilindro) e “edificar a casa do Senhor… em Jerusalém” (Esd 1:2–3). Já na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 18 afirma que “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião…”. Enquanto em Ciro essa liberdade depende da decisão régia, na DUDH trata-se de um direito universal, independente da vontade dos governantes. Quanto ao direito de retorno e mobilidade, o Cilindro registra: “reuni… devolvi-lhes suas habitações”, em paralelo ao relato de Esdras sobre o retorno a Jerusalém (Esd 1:3, 5). A DUDH, no artigo 13(2), assegura que “toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”. Em Ciro, o retorno tem caráter político-religioso; na Declaração, assume a forma de prerrogativa universal e individual. No tocante à restituição de bens culturais e religiosos, o texto babilônico afirma: “devolvi… as imagens… estabeleci santuários permanentes”, enquanto Esdras relata que “os utensílios… entregou Ciro… a Sesbazar” (Esd 1:7–8). A DUDH, no artigo 27, garante o direito à participação na vida cultural. Aqui, o édito régio antecipa a tutela do patrimônio cultural que, no século XX, é consagrada como direito humano coletivo. Sobre a dignidade e igualdade, Ciro se apresenta como o “rei legítimo” que protege cultos, sob a legitimação de Marduque. A DUDH, por sua vez, abre no artigo 1º declarando: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Em Ciro, a dignidade é mediada por uma ordem teológica; na Declaração, é axioma universal, independente de fundamento religioso. Quanto à base de autoridade, o Decreto de Ciro repousa numa legitimação teológica-imperial, em que Marduque outorga a autoridade do rei. Já a DUDH resulta de um consenso laico e universalista, formulado como resposta às atrocidades da Segunda Guerra Mundial. A diferença central está entre a legitimação religiosa e o consenso secular internacional. Por fim, a força normativa também contrasta: o édito de Ciro é uma determinação régia, dependente da vontade do soberano; a Declaração, embora considerada soft law, possui difusão ampla e se tornou referência global. Nesse ponto, há convergência quanto à mensagem ética de dignidade e liberdade, mas divergência quanto aos mecanismos de garantia. É possível traçar ainda, microparalelos: ● “Edificar a casa… em Jerusalém” (Esd 1:2–3) → Art. 18 da DUDH Em Esdras, o direito nasce da graça régia; na DUDH, é direito humano inalienável. ● “Reuni… e devolvi-lhes suas habitações” (Cilindro) → Art. 13(2) da DUDH Ciro possibilita o retorno; a DUDH universaliza a liberdade individual. ● “Devolvi as imagens… estabeleci santuários” (Cilindro) / “utensílios… entregou” (Esd 1:7–8) → Art. 27 da DUDH Antecipação da proteção cultural em chave antiga; na DUDH, codificação explícita. ● Autoapresentação régia (Cilindro; invocação de Marduque) → Art. 1º da DUDH Dignidade derivada da virtude régia vs. dignidade como axioma normativo universal. Verifica-se que todos os dispositivos são envolvidos pela dignidade da pessoa humana, e os contexto da época são muito parecidos. No caso da epoca de Ciro, o povo israelita (conhecido como atualmente judeo) foi levado cativo para babilonia, muitos morreram pela mao o Rei Nabucodonosor, tiveram suas casas queimadas, sua cidade sitiada e seus direitos suspensos, já a Declaracao Universal de Direitos Humanos, o mundo havia presenciado os horrores do nazismo, o genocídio de milhões de judeus e a violação sistemática dos direitos mais básicos da pessoa humana. Nesse cenário, as nações reunidas nas Nações Unidas buscaram afirmar, de forma universal, que certos direitos são inalienáveis, indivisíveis e universais. A Declaração é, portanto, uma resposta racional e normativa à barbárie. É interessante observar como a fundamentação dos dois documentos dialoga com a noção de direito natural. Enquanto o decreto de Ciro está enraizado numa cosmovisão teológica. Ciro age, segundo o texto bíblico, por impulso de Deus, a DUDH baseia-se em uma racionalidade laica, que reconhece a dignidade como fundamento da convivência e da ordem jurídica. No entanto, ambas expressam a ideia de que existem direitos que independem da vontade do soberano ou da legislação positiva. Como afirma Sarlet (2002), a dignidade da pessoa humana é um valor que antecede o ordenamento jurídico, sendo seu núcleo axiológico. Michael Sandel (2011), ao abordar o conceito de justiça, ressalta que uma sociedade justa deve se preocupar não apenas com a forma, mas com os fins: quais valores são promovidos e protegidos? O gesto de Ciro é, neste aspecto, um exemplo de ação ética voltada para o bem comum. Já a Declaração de 1948, ao institucionalizar esses valores, busca garantir que eles não sejam mais relegados à benevolência de governantes, mas reconhecidos como obrigações jurídicas dos Estados. A diferença central, portanto, está na institucionalização. O decreto de Ciro representa um exemplo notável de virtude pessoal aplicada ao poder. A DUDH, por sua vez, procura institucionalizar a ética como política de Estado. Norberto Bobbio (2004) lembra que o problema dos direitos humanos não está mais em sua fundamentação, mas em sua eficácia. A comparação entre os dois documentos nos permite perceber que a eficácia, no caso do decreto, dependia inteiramente da vontade do soberano, enquanto, no caso da DUDH, dependia da vontade coletiva expressa em normas e sistemas de garantia internacional. Contudo, essa comparação também revela que o poder, seja ele teocrático ou democrático, precisa ser limitado por princípios. Ciro, mesmo como monarca absoluto, reconheceu os direitos de um povo vencido. A ONU, ao formular a DUDH, declarou que nem mesmo a soberania dos Estados pode justificar a violação da dignidade humana. Aqui está uma das maiores convergências entre os dois documentos: ambos impõem um limite moral ao exercício do poder. É nesse ponto que a antropologia jurídica de Clifford Geertz oferece uma importante chave interpretativa. Para Geertz, o direito é uma forma de expressão simbólica de significados compartilhados. Tanto o decreto quanto à Declaração são, em suas respectivas épocas, expressões de uma visão de mundo que entende o humano como central e a justiça como valor fundante. A diferença está no simbolismo: o decreto é uma epifania teológica; a DUDH, uma racionalização laica. Ambas, porém, pretendem ordenar o mundo a partir de um ideal ético comum. Não se pode ignorar, no entanto, as limitações dessa comparação. O Decreto de Ciro é uma fonte religiosa, reconstruída por narrativas que servem à fé e à identidade do povo judeu. O Cilindro de Ciro é um documento de propaganda imperial, e seu conteúdo deve ser lido com a devida criticidade. Por outro lado, a DUDH, ainda que moderna e juridicamente influente, carece de força vinculante plena, dependendo da adesão dos Estados para sua eficácia prática. Ambos os documentos são, portanto, simbólicos e normativos, mas não isentos de tensões. Ainda assim, a comparação permite uma conclusão significativa: a proteção dos direitos humanos não é uma invenção moderna, mas uma construção histórica que atravessa culturas, religiões e formas de governo. O gesto de Ciro, embora isolado, já antecipava a ideia de que a justiça deve estar acima da dominação. A DUDH, por sua vez, codifica esse ideal em linguagem internacional, buscando universalizar o que antes era exceção. A implicação desse paralelo é profunda. Ela nos obriga a reconhecer que os direitos humanos não são apenas direitos jurídicos, mas também expressões de uma antropologia moral: a de que o ser humano, em qualquer tempo, é portador de valor incondicional. O desafio contemporâneo continua sendo garantir que esse valor não seja negado por razões políticas, econômicas ou culturais. Portanto, o estudo comparado entre o Decreto de Ciro e a Declaração Universal de 1948 permite ampliar nossa compreensão sobre a origem, o fundamento e o desafio da efetivação dos direitos humanos. Ele nos convida a rever nossas bases filosóficas e jurídicas e a reafirmar que, antes da lei, existe o humano que é aquele que toda justiça começa. Além dos aspectos históricos e jurídicos discutidos, torna-se indispensável explorar os fundamentos éticos e morais que justificam a proteção dos direitos humanos como universais. A ética então entendida aqui como a reflexão sobre o que é justo, bom e adequado ao ser humano em sua essência e a moral como o conjunto de normas sociais que orientam a convivência que atuam como base anterior à codificação legal dos direitos, sendo, portanto, elementos fundantes tanto do Decreto de Ciro quanto da Declaração de 1948. No contexto do Decreto de Ciro, a ética aparece como um valor intrínseco à sua governança. Ao optar por devolver a liberdade religiosa aos povos dominados, Ciro demonstra um compromisso com um ideal de justiça que vai além da dominação militar. Trata-se de um princípio de reconhecimento do outro, de sua identidade, fé, história e cultura em que, mesmo em uma sociedade pré-moderna, revela um senso moral sofisticado. Embora Ciro fosse um soberano absoluto, sua decisão de restaurar os templos e devolver os bens sagrados dos judeus reflete não apenas uma ação política estratégica, mas uma visão ética do poder, que legitima sua autoridade com base na benevolência e no respeito à dignidade humana. Essa perspectiva também pode ser compreendida a partir de uma visão antropológica da ética, como propõe Clifford Geertz (2001), ao afirmar que a estrutura de valores de uma sociedade está inscrita em seus símbolos e práticas culturais. O gesto de Ciro, portanto, é mais do que uma norma ou decreto: é uma representação concreta da ética como modo de governar. Na DUDH, por outro lado, a moralidade ganha contornos universais. Após o colapso da razão legal durante o regime nazista, o mundo compreendeu que o direito positivo, sem base ética, pode servir à barbárie. A DUDH, ao afirmar que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos (art. 1º), recupera o valor da moral como fundamento da legalidade. Como observa Ingo Sarlet (2002), a dignidade da pessoa humana não é apenas um princípio jurídico, mas um valor ético que exige reconhecimento e proteção incondicionais. Portanto, quando se pergunta quais são os fundamentos objetivos que justificam a proteção dos direitos humanos como direitos universais, mesmo em contextos históricos e jurídicos diferentes, como no Decreto de Ciro e na DUDH, pode-se responder com base em três pilares: (i) A dignidade como valor intrínseco ao ser humano, reconhecido tanto no contexto religioso-teológico do Antigo Oriente quanto na filosofia secular contemporânea; (ii) A ética do reconhecimento, que afirma o dever de respeitar o outro em sua alteridade, seja um povo conquistado ou um cidadão global; (iii) A moral universal, que transcende fronteiras e ordenamentos e que confere legitimidade à ordem jurídica quando esta se fundamenta no respeito à condição humana. Esses fundamentos, embora assumam expressões distintas no tempo, mantêm um núcleo comum: a dignidade como valor inegociável e a justiça como ideal político-moral. A universalidade dos direitos humanos não deriva apenas de sua codificação jurídica, mas de uma construção ética compartilhada pela humanidade ao longo de sua história. É por isso que, mesmo em períodos distintos como a Antiguidade persa e a modernidade pós-guerra, encontramos ecos da mesma verdade fundamental: todo ser humano merece respeito, liberdade e proteção. Essa constatação reforça a tese de que os direitos humanos são resultado de uma construção social, cultural e ética contínua, e que não podem ser relativizados em nome de interesses políticos, religiosos ou econômicos. Ciro, ao respeitar a identidade de um povo vencido, e a DUDH, ao proclamar a igualdade e a liberdade de todos, apontam para a possibilidade de uma ordem mundial baseada no reconhecimento mútuo e na responsabilidade compartilhada pela proteção do outro. Dessa forma, a comparação entre os dois documentos não apenas amplia nossa compreensão dos direitos humanos, mas revela que sua origem está menos nas normas e mais nos valores. O direito, quando fundado sobre a ética e orientado pela moralidade, cumpre sua mais nobre função: ser instrumento de justiça, liberdade e paz.
5. UNIVERSALISMO X MULTICULTURALISMO - INTERPRETAÇÃO JURÍDICA, IMPLICAÇÕES ÉTICAS E ANTROPOLÓGICAS: A comparação entre o Decreto de Ciro e a Declaração Universal dos Direitos Humanos revela que ambos os documentos, compartilham uma mesma essência: a busca por legitimar juridicamente o valor da dignidade humana. No plano jurídico, essa relação evidencia a passagem de uma concepção de direito vinculada à autoridade e à vontade soberana, como no caso de Ciro, para uma concepção racional, laica e institucionalizada dos direitos, como na DUDH. O gesto régio de Ciro representa o embrião de um direito ainda personalista e teológico, enquanto a Declaração de 1948 simboliza o amadurecimento do direito positivo internacional, fundado em princípios éticos universais e mecanismos jurídicos de proteção. Conforme destaca Hans Kelsen (1998), o avanço do direito está justamente na sua capacidade de abstrair-se da moral particular dos governantes e se estruturar como sistema normativo autônomo e racional. Do ponto de vista ético, contudo, ambos os textos nascem da consciência de que a lei não pode ser neutra em relação ao valor da vida humana. O ato de Ciro, ao devolver a liberdade e o culto a um povo oprimido, manifesta uma ética do reconhecimento e da compaixão; a DUDH, ao afirmar que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, consagra uma ética da universalidade e da justiça. Essa transição da benevolência régia para o imperativo moral universal expressa o amadurecimento da própria noção de justiça, que, como observa Michael Sandel (2011), só é plena quando se orienta não apenas por regras formais, mas pelos fins que promove, o bem comum e o respeito incondicional à pessoa humana. Sob a perspectiva antropológica, conforme interpreta Clifford Geertz (2001), tanto o Decreto de Ciro quanto a DUDH devem ser compreendidos como expressões simbólicas de visões de mundo. Cada sociedade cria, por meio do direito, uma linguagem que traduz seus valores e crenças sobre o que é humano e o que é justo. Assim, o decreto persa reflete uma cosmologia teocêntrica, em que o direito deriva da vontade divina; já a DUDH traduz uma cosmologia humanista, na qual o ser humano se torna medida e fim do direito. Em ambos os casos, o direito cumpre uma função cultural: ordenar o mundo segundo um ideal moral compartilhado. Essa análise conjunta permite afirmar que o direito, a ética e a antropologia não são dimensões isoladas, mas campos interdependentes de uma mesma experiência humana. O direito, sem ética, torna-se mero instrumento de poder; a ética, sem juridicidade, carece de eficácia; e a antropologia, sem ambas, perde seu vínculo com a realidade normativa. O Decreto de Ciro e a DUDH, cada um a seu modo, demonstram que o verdadeiro fundamento da justiça está na articulação entre norma, valor e cultura, uma tríade que sustenta a própria ideia de humanidade. A reflexão final que emerge da comparação entre o Decreto de Ciro e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 envolve o debate entre universalismo e multiculturalismo, um dos dilemas centrais da teoria contemporânea dos direitos humanos. Esse debate questiona se os direitos humanos são verdadeiramente universais, válidos para todos os povos e culturas, ou se devem ser interpretados à luz das particularidades históricas, religiosas e culturais de cada sociedade. O universalismo, fundamento teórico da DUDH, parte da premissa de que todos os seres humanos possuem dignidade e direitos inerentes, independentemente de sua origem. Essa visão sustenta que há valores éticos e morais comuns à condição humana que transcendem fronteiras e tradições. Como afirma Flávia Piovesan (2013, p. 31), “a universalidade dos direitos humanos funda-se na ideia de que a dignidade humana é o valor supremo que deve inspirar e orientar toda a ordem jurídica, nacional e internacional”. Nesse sentido, a DUDH representa um consenso moral e jurídico global, nascido da experiência trágica das guerras e do totalitarismo, afirmando que a dignidade humana não pode ser relativizada por qualquer Estado, religião ou cultura. Por outro lado, o multiculturalismo, conforme argumenta Boaventura de Sousa Santos (1997), adverte que a universalidade pode esconder uma forma de “imperialismo cultural”, ao impor valores ocidentais como se fossem universais. Para ele, “não há direitos humanos universais sem uma hermenêutica diatópica”, isto é, sem o diálogo entre as diferentes culturas sobre o significado de dignidade, liberdade e justiça. A concepção multicultural propõe que os direitos humanos sejam reinterpretados a partir da diversidade cultural e da pluralidade de experiências históricas, reconhecendo que o que é justo para uma sociedade pode ter outra significação em contextos distintos. Nesse ponto, a comparação entre Ciro e a DUDH revela-se emblemática. O decreto persa expressa um ideal de tolerância e respeito religioso moldado por uma cosmovisão teológica oriental, em que a legitimidade do poder deriva de uma vontade divina. Já a DUDH representa a formulação moderna e laica de uma ética universal. Ambos, entretanto, partem do mesmo impulso moral: o reconhecimento da dignidade humana como valor intrínseco. O multiculturalismo, ao invés de negar o universalismo, pode ser visto como seu complemento crítico — um convite para repensar o universal à luz das diferenças. André de Carvalho Ramos (2022) observa que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos evoluiu justamente a partir dessa tensão: de um modelo universalista rígido, para uma concepção pluralista, capaz de dialogar com identidades locais e regionais. Essa evolução é visível, por exemplo, na criação do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que, segundo Piovesan (2013), representa um “universalismo contextualizado”, no qual o ideal de dignidade humana é reafirmado, mas interpretado conforme as particularidades socioculturais da América Latina. Assim, a discussão entre universalismo e multiculturalismo não deve ser vista como uma oposição, mas como um equilíbrio necessário. O universalismo oferece o núcleo ético e normativo, a dignidade, a igualdade e a liberdade, enquanto o multiculturalismo garante a legitimidade social e cultural desses valores, ao reconhecê-los nas múltiplas formas de humanidade. Como conclui Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 14), “os direitos humanos serão universais na medida em que forem reinventados localmente, a partir das experiências concretas de sofrimento e resistência”. Dessa forma, o estudo comparativo entre o Decreto de Ciro e a Declaração Universal dos Direitos Humanos permite compreender que o verdadeiro universalismo dos direitos humanos não está em sua uniformidade, mas em sua capacidade de acolher a diversidade humana. A dignidade, que uniu o gesto de Ciro ao espírito da DUDH, continua sendo o ponto de convergência entre culturas, religiões e sistemas jurídicos. O desafio contemporâneo é, portanto, construir um universalismo plural, em que o respeito às diferenças não significa relativismo, mas a reafirmação de uma ética comum que reconhece em cada cultura a mesma humanidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa teve como objetivo central analisar, sob a perspectiva comparativa, os fundamentos históricos, filosóficos, jurídicos e éticos que ligam o Decreto de Ciro, emitido no século VI a.C., à Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas. A pergunta norteadora que guiou este estudo foi: Que ponto é possível encontrar fundamentos objetivos para justificar a proteção dos direitos humanos em contextos tão distintos como o Império Persa e o cenário pós-Segunda Guerra Mundial? Ao longo dos capítulos desenvolvidos, foi possível demonstrar que tanto o Decreto de Ciro quanto a Declaração Universal de Direitos Humanos representam, cada um à sua maneira, tentativas de institucionalizar valores universais como a liberdade, a justiça e a dignidade humana. No primeiro capítulo, foi traçado um panorama histórico detalhado do contexto do Império Persa sob o reinado de Ciro, o Grande, destacando sua postura tolerante, humanitária e comprometida com a liberdade religiosa e a restauração cultural de povos subjugados. Por meio do relato bíblico de Esdras e de documentos arqueológicos como o Cilindro de Ciro, revelou-se que, mesmo sem um sistema jurídico moderno, valores éticos próximos ao direito natural já encontraram expressão em decisões governamentais. No segundo e terceiro capítulos, a pesquisa se concentrou na interpretação entre o direito natural e positivo e na análise da história do direito com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos como um marco normativo do pós-guerra, que institucionalizou princípios éticos e morais baseados na dignidade da pessoa humana. A partir de autores como Lynn Hunt, André de Carvalho Ramos, Sarlet, Barroso, Bobbio e Sandel, observou-se que os direitos humanos não surgiram ex nihilo (a partir do nada), mas são frutos de um processo civilizatório contínuo, influenciado por tradições religiosas, filosóficas e humanistas. O quarto e quinto capítulo, por sua vez, consistiu em uma análise comparativa aprofundada entre os dois documentos, e nas interpretações jurídicas e nas implicações éticas e antropológicas dentro do universalismo e multiculturalismo demonstrando que, apesar de suas diferenças estruturais, um, um decreto real com base teológica; outro, uma declaração internacional de caráter secular, ambos compartilham fundamentos que transcendem o tempo: o reconhecimento da dignidade do outro, a limitação moral do poder, e a convicção de que alguns direitos são inalienáveis. Essa análise revelou que o direito natural se manifesta historicamente em diversas formas, e que a positivação moderna, embora necessária, não é a origem dos direitos, mas sua formalização institucional. Os resultados da pesquisa apontam para uma conclusão essencial: o ser humano, em diferentes épocas e sob diferentes sistemas políticos, demonstra uma tendência constante de reconhecer a necessidade de proteger aquilo que é essencial à sua condição, sua liberdade, sua fé, sua cultura e sua vida digna. Essa constatação reforça o caráter universal dos direitos humanos, enquanto expressão moral e jurídica da experiência humana coletiva. A análise também mostrou que a efetividade desses direitos está condicionada ao contexto político e à vontade dos atores sociais. Enquanto o gesto de Ciro dependeu exclusivamente da sua virtude e autoridade como rei, a DUDH busca institucionalizar garantias por meio de um pacto internacional. Essa transição, do ético para o jurídico, do pessoal para o institucional, revela uma evolução importante: os direitos humanos deixam de depender da boa vontade de governantes e passam a ser deveres estatais e compromissos internacionais. Todavia, o estudo também identificou limitações relevantes. O Decreto de Ciro, apesar de seu valor simbólico e ético, é interpretado a partir de fontes religiosas e documentos imperiais de natureza propagandística. Já a DUDH, embora carregue uma autoridade moral global, enfrenta obstáculos em sua aplicação prática, como a resistência de alguns Estados, a relativização cultural e a ausência de sanções coercitivas efetivas. Dessa forma, a pesquisa reafirma que os direitos humanos são, ao mesmo tempo, conquistas jurídicas e construções culturais. Sua proteção não se limita à sua existência formal, mas exige vigilância permanente, engajamento político e compromisso ético. A história do Decreto de Ciro mostra que mesmo sob estruturas autoritárias é possível o florescimento de princípios de justiça. Já a DUDH demonstra que, em contextos democráticos, é possível transformar valores morais em garantias jurídicas com pretensão de universalidade. Como proposta para pesquisas futuras, sugere-se o aprofundamento da análise comparada entre outros documentos históricos que antecipam princípios dos direitos humanos como a Carta Magna inglesa (1215), os Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa (1789), e tradições religiosas como a Torá, o Corão e os textos budistas, buscando compreender como distintas culturas e tradições contribuíram para o ideal contemporâneo de dignidade humana. Além disso, seria pertinente investigar como a recepção contemporânea do Decreto de Ciro se manifesta em debates sobre pluralismo religioso, reconstrução de territórios e justiça transicional, especialmente em contextos de conflitos armados e processos de reparação histórica. Em essencial, este trabalho buscou demonstrar que os direitos humanos são uma expressão da humanidade em sua busca por justiça, segurança e pertencimento. Antes de serem leis, são ideias; antes de serem garantias, são convicções. E, como mostrou tanto Ciro quanto a comunidade internacional em 1948, essas convicções, quando transformadas em ações, têm o poder de mudar destinos e reconstruir civilizações.
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